segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

TRAJETÓRIA DE VIDA e MEMÓRIA

 

Este ano, 05 de junho de 2025, esta árvore completa 08 anos, compondo o jardim da CREDE 12. Ela germinou sob as minhas mãos e dela, muitas árvores desta espécie estão a crescer nas escolas do Sertão Central e em Russas. Vejam suas belas flores, um dia ela foi semente. Florestas inteiras provam o milagre das semenes. Sob esta árvore, muitas vezes eu estive aqui para relaxar, pensar, irrigar e colher sementes. Muitas vezes inicio o meu dia aqui. Como escreve o grande botânico Stefano Mancuso: plantas? Sabemos muito pouco sobre elas e o pouco que pensamos saber está errado porque elas são mais sensíveis do que os animais. Por isso, aqui é talvez o lugar que sentirei mais saudade proque as plantas sabiam do motivo das minhas visitas, do meu cuidado, das nossas conversas. Aqui deixo parte da minha vida, das muitas manhãs, das muita tardes e das muitas vezes que cheguei com os pés sujos de barros na sala da superintendência, mesmo após limpá-los nas calçadas e no tapete. Adeus ipê rosa, adeus ipê roxo, adeus ipê amarelo, jacarandá, limoeiro. Adeus queridas.

Luis Moreira de Oliveira Filho.

 

Nordeste é uma ficção

Nordeste nunca houve

Não eu não sou do lugar

Dos esquecidos

Não sou da nação

Dos condenados

Não sou do sertão

Dos ofendidos

Você sabe bem

Conheço o meu lugar

Belchior.

Trajetória de vida

 

 Fui, pelos sonhos e vivências de meus pais e das minhas lutas, o primeiro membro da família formado e professor. Lembro-me, já graduado no final dos anos 80, um misto de realização por um lado, por outro, os desafios que teria que enfrentar pela vida, dignificando toda a luta dos meus pais. Por isso, este texto inicial está permeado por sentimentos diversos, nostalgia, saudades, dores de quem acabou de perder sua mãe querida, mas também de afetos, gratidão, sonhos e vivências que serão traduzidos como trajetória de vida e memórias ao encontro do objeto de estudo.

Importa observar aos leitores que o presente texto não se amarra em uma narrativa linear e fria das letras, tendo em vista que as lembranças e memórias vão se conectando entre fatos e eventos em momentos históricos diferentes nessa trajetória de vida, do Jardim de Infância aos estudos acadêmicos mais elaborados da pesquisa científica. Como ser aprendiz histórico, sempre em construção e reconstrução, moldado a cada leitura realizada, reporto-me aos primeiros rudimentos do processo de domínio do vernáculo, pelo qual busco, agora argumentar, a partir dos fios deste tecido acadêmico, um pouco da minha história e memória de vida.

Nessa perspectiva, Toledo e Barrera-Bassols (2016) discorrem que a memória é um fabuloso instrumento da espécie humana que possibilita mergulhar nas lembranças e recordações que sustentam a relação  entre ser humano e  natureza, em constante transformação no percurso histórico de sua vida. Além do mais, conforme ressaltam Derossi e Ferenc (2020) as trajetórias de histórias de vida buscam clarear os processos de significação na vida dos sujeitos pesquisadores que narram sobre si, bem como o filtro do que deve ser rememorado e reflexões teóricas e empíricas, sua existência e sua memória. 

 Destarte, coloco-me como tecelão que, ao longo deste memorial, busca expressar a sua humanidade e seus sentimentos articulados com os saberes das ciências e também das etnociências desenvolvidas na pesquisa acadêmica em que a ciência aponta o método a ser aplicado, a filosofia na orientação ao pesquisador sobre como pensar o objeto da pesquisa para poder intervir, refletindo sobre o passado, suas memórias sobre o que fomos, o que somos e o que nos tornamos. E a ecologia dos saberes, ou diversidade de saberes que busca dar consistência epistemológica ao pesquisador (SANTOS; MENESES 2010).

Compreender este movimento de nossa completude, as relações fundamentais de experiências sobre a nossa história de vida e o que projetamos para o futuro como oficina de tecelagem, reconstruindo assim, o fio da história de vida, é um desafio. Falarei de início do lugar em que vivi até os cinco anos de idade, mas que guardo muitas memórias de um tempo de muitos significados e sentidos em que a presença do Estado não existia em nossas vidas. Estávamos à nossa própria sorte na relação com a natureza,  materializando a nossa existência.

Como escreve e canta Belchior (1979) sobre "Conheço o meu Lugar”, o “Nordeste é ficção, Nordeste nunca houve, ou seja, o poeta fala de um Nordeste com muitos sentidos e significados. De um lado, o Nordeste com a sua riqueza cultural, de outro, os sentidos do estereótipo de miséria de uma região desconfigurada e flagelada  não somente pela seca, mas pela inexistência de políticas públicas ao longo da história.  Sendo assim, Freyre (2013, p. 41) alude sobre “os sertões de areia seca rangendo debaixo dos pés. Os sertões de paisagens duras roendo nos olhos. [...] Ou um Nordeste onde nunca deixou de haver uma mancha de água, um rio, um riacho e os esverdeados de uma lagoa”.

Ou como descreve e reforça Albuquerque Jr. (2011), o Nordeste como uma invenção e resultados de estereótipos, como a indústria da seca, os seus latifundiários e coronéis do sertão e que precisa ser mais historicizado e compreendido em uma visão autêntica de sua cultura e de seu povo, suas lutas, sua história e sua memória.

Nessa tessitura de memória e história de vida nasci em meados da década de sessenta, do século passado, Fazenda Pitombeiras, localizada na Ilha do Poró, município de Jaguaruana, estado do Ceará. A natividade se deu na casa do meu avô, que nasceu na comunidade de Mutambas na mesma ilha, viveu da agricultura, do extrativismo e do beneficiamento da cera de carnaúba, (ver figura 1).  E também meus pais, que se casaram e foram morar na comunidade do Poró, materializando seus sonhos, suas vidas e fazendo germinar na terra os seus sonhos, explorando as vazantes do rio Grande, pescando, caçando, cuidando dos animais no curral, ordenhando o leite da vaca. Desse modo, recordo-me um dia que meu pai me falou: “aquele tempo foi o melhor dos dias da minha vida”. 

 

Figura 1 – Mapa da Ilha do Poró no  município de Jaguaruana-CE

Fonte: IPECE, (2019).

Observa-se, (ver figura 01), o mapa do município de Jaguaruana, em destaque no centro a Ilha do Poró e na parte inferior, as comunidades, (Pitombeiras e Poró) entre os dois rios - Campo Grande e Rio Grande e que,  segundo Diegues (2008) são as representações sociais dos povos camponeses que materializam suas existências em uma simbiose com rios, matas e outros aspectos da natureza.

Então, quando a parteira chegou, já de madrugada, eu já tinha nascido. Era momento de boas chuvas e os rios (rio Grande e Campo Grande[1]) estavam de “barriga cheia”, vomitando água nas planícies fluviais de nossas comunidades, cobertas por carnaubeiras (Copernicia prunifera), oiticicas (Licania rigida) e juazeiros (Zizyphus joazeiro) a se perderem de vista nas grandes várzeas daquele sertão serpenteado por esta linda e exuberante biodiversidade nativa, animada por uma sinfonia de animais e pássaros em todas as manhãs.

No plano nacional já havia se comemorado um ano da alegada Revolução de 31 de março de 1964”, ou seja, o golpe civil-militar, em parte, impulsionado, entre outros motivos, segundo Prado Jr. (1979), pela emergência da questão fundiária e pressão popular por reforma agrária contra o latifúndio e as condições precárias dos trabalhadores rurais. No entanto, na labuta diária, estes eventos nacionais eram indiferentes em nossas vidas.

Naquela noite, muitas mulheres resolveram parir e as parteiras quase não tiveram descanso, porque o campo naquele sertão era fértil. E a família crescia todo ano, porque os corpos que labutavam no chão daquele sertão, plantavam e colhiam o pão depois da semeadura;  à noite, também, semeavam a semente”, depois de um longo dia que começava às 4h da manhã, no curral. Assim, a Terra se coloca como mãe, fértil, nutridora, fecunda e os ritos cósmicos se manifestam, tendo o cosmo como um organismo real, vivo, sagrado em que a “fecundidade feminina tem um modelo cósmico: o da Terra Mater, da Mãe universal”, (ELIADE, 1992, p. 72).

Nessa perspectiva da Hipótese Gaia, Terra Viva, a deusa grega como propõe os estudos de Lovelock (2020a, 1985, p. 16), que define Gaia como “una entidad compleja que comprende el suelo, los océanos, la atmósfera y la biosfera terrestre: el conjunto constituye un sistema cibernético autoajustado por realimentación que se encarga de mantener en el planeta un entorno física y químicamente óptimo para la vida”.[2] E como observa Boff (1999), inaugura-se assim uma nova perspectiva amorosa à Mãe-Terra, ou, como escreve Latour (2020, p.199) a Gaia sendo “uma injunção para rematerializar o pertencimento ao mundo”.

 Para Gutiérrez e Prado (2013, p. 22) a “Terra é Gaia”, um superorganismo vivo em evolução, o que foi feito a ela, repercutirá em todos os seus filhos”. Ou como alerta Lovelock sobre a vingança de Gaia (LOVELOCK, 2020a, 2020b). Ou Pachamama - Mãe Terra - uma cosmologia dos povos tradicionais andinos-amazônicos e reverberada pelos movimentos constitucionalistas de governos populares de Equador e Bolívia, na primeira década deste século, que passaram a considerar Pachamama como entidade viva, conforme preâmbulo da Constituição do Equador de 2008, citado no livro de Zaffaroni (2011) - La Pachamama y El Humano - preâmbulo de Bayer (2011, p.16)  “Celebrando a la naturaleza, la PachaMama, de la que somos parte que es vital para nuestra existencia... (se decide construir) una nueva forma de convivencia ciudadana, en diversidad y armonía con la naturaleza para alcanzar el buen vivir”[3].

Sobre esta visão da cosmologia dos povos andinos tradicionais é válido destacar que como tecelão, que busca os melhores fios para produzir o melhor tecido, considero importante destacar as minhas simbologias, as minhas origens nesse texto introdutório e que objetiva ligar os fios ao objeto da pesquisa. Assim, nasci em noite de muita chuva; cresci entre parteiras, rezadeiras, benzedeiras, homens, mulheres do campo; como paisagens presas à minha mente, em referência à Schama (1996) em “Paisagem e Memória”, estão as lindas oiticicas, juazeiros e majestosas carnaubeiras, açoitadas pelo vento, principalmente em noites longas assustadoras, recheadas por uma trilha sonora composta por  animais e insetos.

Concordando com o autor, as paisagens e percepções humanas são inseparáveis e são obras da mente, que vão compor camadas de lembranças na vida humana, principalmente de crianças que têm da natureza lembranças, mitos e significados complexos. Neste sentido, Toledo e Barrera-Bassols (2016, p. 23) discorrem que “a espécie humana é a única que pode, de forma consciente, remontar as recordações que compõem sua própria história com a natureza”.

Assim, cobertos por lençóis em nossas redes, ouvindo os pingos de chuva no telhado, de repente, a noite era cortada por um rasgo da “rasga mortalha”[4] e minha avó perguntava: esta bicha está adivinhando o quê?”. E começava a rezar à Nossa Senhora do Perpetua Socorro, pedindo proteção. Conforme discorre Eliade (1992, p. 59), para o ser humano religioso, “a natureza nunca é exclusivamente natural” porque está cheia de mitos e de valores religiosos, tendo em vista que o cosmo é uma criação de Deus.

 Enquanto isso, minha irmã começava a tossir e mamãe dizia que ela estava com “difrúcio”[5] e que iria preparar leite quente com mastruz. Para Santos e Meneses (2010), discorrendo sobre epistemologias do sul e ecologia dos saberes, a primazia que estas experiências sociais produzem conhecimentos, crenças, magias e entendimentos intuitivos ou subjetivos na relação ser humano e natureza. 

Por isso, todas estas coisas que permeiam as nossas vidas e existências são culturais e naturais ao mesmo tempo e vão compor as nossas memórias como observa Descola (2016), que são a vida em constante evolução, em processo de lembranças. E de acordo com Nora (1981), a memória é dialética entre esquecimentos, porque é  suscetível de revitalizações, enquanto história é reconstrução, mas nunca completa na seguinte questão:  “[...] a história demanda sempre análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história liberta e a torna sempre prosaica” (NORA, 1981, p. 9).

Então, no meu sertão tinha um pouco de tudo, os rios, as conversas dos amigos do meu pai na boquinha[6] da noite, no alpendre de casa, depois de um dia de muita labuta. Tinha o cachorro Jupi, tinha um radinho de pilha no centro da casa. E a noite chegava, com os seus mistérios e assombrações. Tínhamos uma oração para cada momento de nossas vidas, ao acordar, depois do almoço e antes de dormir. Tinha, também, novenas, terço em família e aos domingos a missa na igreja, distante da comunidade, percurso que era feito em lombo de jumento e carroça na estrada serpenteada por carnaubeiras e pelo encanto da natureza. Para Eliade (1986, p. 75) não há homem moderno, seja qual for o grau de sua irreligiosidade, que não seja sensível aos “encantos” da natureza”.

Sobre moderno, modernidade, modernização, Latour (1994), a partir das convicções de seu cálamo, resultado de suas leituras cognoscentes, afirma, peremptoriamente, que jamais fomos modernos pela nossa incapacidade de anunciar o novo, de rasgar as vestes da ambição, do individualismo, da selvageria e da dominação e subjugação de povo, a partir das ciências e do avanço tecnológico. E que a modernidade deveria estar conectada com o desenvolvimento humano e articulada entre o mundo natural e social, no entanto, ela e suas ciências são substratos para guerras, fome e crise humanitária no mundo.

Assim, a modernidade não entregou ao século XXI aquilo que poderia ter entregue. Porquanto, a crise climática e o mundo em permanente conflito, fome, miséria e guerra são evidências de que os humanos não apenas estão matando a natureza, mas o próprio criador em sua imaginação criadora e seus objetivos para os seres bióticos e abióticos e quaisquer organismos que compõem as teias da vida. Ao contrário do projeto de individualizar, fragmentar as relações humanas e destas relações, a integração com a natureza, o “papel crucial da linguagem na evolução humana não foi a capacidade de trocar ideias, mas o aumento da capacidade de cooperar”, (CAPRA, 1996, p. 229).

Nessa perspectiva, as famílias, amigos (as), vizinhos (as) cooperavam uns com os outros, até trocando produtos da agricultura, como leite, carne, frutos é que vivi as minhas primeiras experiências com a natureza. Como passagens, que se eternizam em nossas memórias, as noites de muitas chuvas, o céu iluminado pelos relâmpagos e trovões enchiam de pavor a noite cada vez mais assustadora. A chuva, empurrada pelo vento, açoitava as majestosas carnaubeiras em noite gelada. E revirando estas memórias, vivi até os cinco anos na comunidade de Pitombeira, localizada na Ilha do Poró, entre os rios Campo Grande e rio Grande. Era assim que os povos das comunidades desta ilha chamavam os dois “braços” do rio Jaguaribe, que se dividiam a partir da Ilhota no município de Russas. Para Diegues et al. (1999), cada povo, segundo os seus conhecimentos tradicionais possui uma forma de perceber e classificar coisas e eventos da natureza.

Minha mãe era da comunidade do Campo Grande e meu pai da comunidade de Pitombeira. Ele muitas vezes precisou amarrar a roupa na cabeça para atravessar o Campo Grande, utilizando-se de um “cavalete”[7]. O rio era a nossa existência; suas correntezas renovavam a nossa esperança a cada bom inverno de boas farturas. A cosmologia indígena norte-americana[8] orienta que “os rios são nossos irmãos, eles saciam nossa sede. [...] Vocês devem lembrar e ensinar às suas crianças, que os rios são nossos irmãos, e seus também, e vocês devem, daqui em diante,  dar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão” (SEATTLE, 1987, p.19).

Na relação homem/natureza, em tempo de fartura e de namoro, aos domingos, os pais levavam suas filhas à missa na igreja da comunidade para rezar e tomar a hóstia consagrada. Porém, este era também o momento em que os jovens podiam paquerar. Assim começa a história de minha vida: encontro de olhares, enquanto os meus avós estavam ocupados com o sermão e orações do padre. Desta forma, os meus pais iniciaram suas vidas, a partir do ano de 1960, como agricultores. O meu pai com uma “junta de boi” arando a terra e a minha mãe atrás semeando a terra com sementes de feijão, milho e também algodão.

Nesse tempo vivi desde criança entre as belas árvores da caatinga, o cheiro da palha molhada, da cera de carnaúba, da chuva no chão e do encanto da natureza e suas paisagens que ainda estão nas lembranças e nos meus sentimentos e sentidos. Para Schama (1996, p. 23), o que a paisagem e a memória pretendem é “desenvolver um modo de olhar, de descobrir o que já possuímos, mas que de alguma forma, escapa-nos ao reconhecimento e à apreciação”. Por isso, a lembrança de ir ao rio com o meu pai, que levava jumentos carregando barris para encher os nossos potes.

Nesse sentido, a natureza tem alma, tem significados, tem sentimentos preservados em nossas memórias de vida e de nossas comunidades camponesas. No entanto, como destaca Descola (2016), a natureza perdeu a alma conforme o avanço das ciências, das tecnologias e de sua exploração desenfreada, em que plantas, animais, terras, águas e rochas perderam as ligações com os seres humanos.

Por outro lado, Prigogine e Stengers (1991,p. 42) apontam que “uma nova aliança  pode firmar-se com a natureza, em cujo devenir participem o jogo experimental e a aventura exploratória da ciência”. Segundo os autores pode ser um novo contrato com a natureza, em que a história humana, suas sociedades e seus saberes ignoraram. Para Boff (1999, p. 25) um “novo encantamento, de re-ligação pela natureza e de compaixão pelos que sofrem”.

Sob esta visão cosmológica, os rios se constituíram a essência de nossas vidas, principalmente em época de fartura e que enchiam de húmus as nossas vazantes de onde os meus pais tiravam os sustentos em processo de simbiose  entre natureza e  ser humano para materialização de suas existências, produzindo cultura e saberes.

De acordo com Toledo e Barrera-Bassols (2015, p.  126)  “[... ] saberes populares são formas de sabedoria individual ou coletiva que se estendem por um domínio territorial ou social determinado”. Por outro lado, para Souza e Meneses (2010), a ecologia dos saberes poderá ajudar ao pesquisador a produção da vida de povos, como os povos camponeses que produziram historias nas lutas e práticas sociais.

Nesse sentido através das experiências sociais do ser humano na relação com a natureza vai emergir a produção de saberes que vão compor diferentes interpretações do mundo, a diversidade de culturas e manejo da diversidade biológica. Ou seja, ser humano e natureza vão se entrelaçar em uma interessante simbiose, e nesse processo são produzidos uma pluralidade de saberes baseados em experiências individuais e coletivas entre humanos e não humanos nos seus diferentes habitats, sendo, por isso, importante discorrer sobre essas relações e ecologia dos saberes.

 

Ser humano, natureza e ecologia dos saberes

 

Nessa história ser humano e natureza, o encontro com o rio era um momento muito especial para tomar banho, nadar, pular e brincar. O rio era a nossa existência com fartura de peixes e em suas vazantes o meu pai colhia batatas, jerimum, melancia. Quando chegava o período seco, o sertão se transformava e ficava mais árido, mas tínhamos as nossas despensas com caixão de rapadura, farinha, feijão. No entanto, a seca nos trazia graves problemas de abastecimento de água e da produção de alimentos. Faltavam a nós mais conhecimentos para a convivência com o seminário porque os tempos de fartura desapareciam com o período seco e, muitas vezes, a seca assolava a existência de nossas comunidades. E tudo que era verde e cheio de vida se esmaecia e nos traziam muitos desafios. 

Importa considerar que o Estado não existia em nossas vidas, naquele momento histórico e de grandes desafios para a nossa existência. As cheias do rio Jaguaribe também nos traziam muitos problemas e muitas vezes tínhamos que subir para regiões mais altas para salvar os animais. Mesmo assim, as lembranças da linda biodiversidade das várzeas, de ricas paisagens das carnaubeiras estão eternizadas nas lentes de minha vida e, principalmente, como a minha família, utilizando recursos do que a natureza oferecia.

É importante discorrer o que diz Diegues et al. (1999, p. 32): “biodiversidade pertence tanto ao domínio do natural como do cultural, mas é a cultura enquanto conhecimento que permite às populações tradicionais entendê-la, representá-la mentalmente, manuseá-la, retirar suas espécies, colocar outras e enriquecendo-a”. Como nos ensina Marx (2007, p.8), “os homens que desenvolvendo a sua vida material e suas relações materiais, transformam, com esta realidade que lhes é própria, o seu pensamento e os produtos do seu pensamento”.

Vale ressaltar que, enquanto meus pais labutavam, eu passava horas e horas com os animais, admirando as árvores da região, principalmente, as altas e robustas carnaubeiras, esperando a hora em que o vento as sacudia e derrubava os seus frutos pelo chão. Quando caía um fruto no chão barrento, eu corria para pegá-los e comer antes dos animais que viviam em nosso quintal em um processo no qual homem e natureza fazem parte do ecossistema, muitas vezes competindo por recurso. Conforme Marx (2007, p. 771) “enquanto existirem homens, a sua história e da natureza condicionar-se-ão reciprocamente.

Importa considerar que esta memória biocultural ou axioma biocultural[9] em que Toledo e Barrera-Bassols (2006) discorrem sobre os vínculos entre natureza e cultura, destacando a característica de sucesso da espécie humana de saber utilizar elementos do processo natural ao tempo em que mantém suas memórias individual e coletiva que emanam do contexto cultural local. Para Carvalho, Cavalcante e Nóbrega (2011, p. 28) “tudo que esteja presente em um determinado ambiente, inclusive as pessoas - é parte que o constitui”. Por isso, o ambiente é um amálgama multidimensional, é natural e ao mesmo tempo permeado pelas condições sociais, econômicas, culturais e psicológicas daquele contexto.

Na opinião de Toledo e Barrera-Bassols (2016), os conhecimentos sobre a natureza, resultados de observações e interaçõe, foram importantes para a sobrevivência das famílias em suas comunidades. Trata-se, segundo os autores, de saberes que foram evoluindo e transmitidos oralmente na relação ser humano-natureza, em que o produto final está nas memórias de homens e mulheres.

Como aponta Santos (2010), a ecologia dos saberes visa possibilitar a compreensão de diferentes conhecimentos, os científicos e tradicionais e que objetivam uma relação mais harmoniosa entre sociedade e natureza. Desta forma para Santos e Meneses (2010) a ecologia dos saberes está permeada por uma diversidade de conhecimentos e saberes difusos nos mais diferentes lugares do mundo.

 Sendo assim, foram cinco anos de minha existência no sertão até a minha família fazer mudança para a cidade, que está muito presente na minha territorialidade humana, em que a minha identidade está relacionada com as minhas cognições, memória afetiva e pertencimento. Segundo Mourão e Cavalcante (2011), a noção de identidade está relacionada aos aspectos biológicos, psicológicos, sociais e outros aspectos. 

Nesse contexto, até então, minhas irmãs mais velhas tinham aulas com uma professora da comunidade, prima da minha mãe,  que casou e foi embora para a capital. E minha mãe disse para o meu pai: “Luis, vamos embora para a cidade, porque não podemos criar os nossos filhos sem escola.” Fugimos, não apenas das situações difíceis no sertão, por conta da escassez em tempo de seca, mas,  principalmente, da escassez das letras, das ciências e das artes.

Já éramos uma família de nove pessoas que precisavam ter a experiência e necessidade de aprender as ciências, historicamente construídas pela humanidade. Naquela época, não existiam escolas no campo em nossas comunidades, ou escolas rurais. Historicamente, o Estado brasileiro negou ou negligenciou as políticas públicas para a educação no e do campo, conforme explica Caldart (2002, p .18). “No: o povo tem direito a ser educado no lugar onde vive; Do: o povo tem direito a uma educação pensada desde o seu lugar e com participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais”.

Desta forma, na contramão das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, (Brasil, 2002), o Campo nunca foi de possibilidades porque estava envolto e era estigmatizado como miséria, abandono, analfabetismo elevado que desencadearam o êxodo rural. Assim, por falta de escolas, deixamos a nossa comunidade e nossa história na relação com a natureza.

Era o ano de 1970, tempo do tricampeonato da seleção brasileira, Pelé, Tostão e Rivelino estavam sempre nas rodas de conversa de meu pai e amigos. Eram 90 “milhões em ação, pra frente Brasil”, sendo apenas 350 mil com nível superior e milhões no analfabetismo.

Também era tempo do aviltamento da ditadura civil-militar, em que Belchior[10] (1979) escrevia e cantava “o que poderia fazer um homem comum naquele presente momento” e que havia perigo na esquina. E meu pai, com a venda de animais e outras produções agrícolas, montou uma pequena mercearia, da qual tirávamos o nosso sustento e a nossa manutenção e da qual a minha família colaborava com a “Caixa Escolar” do Grupo Escolar Matoso Filho, além de compra de livros, material escolar e fardamento.

Na cidade eu me encontrei com um novo mundo: dos carros de um lado para outro da rua, às pessoas andando apressadas. Já não existiam as paisagens das carnaubeiras, os rios, porém, encontrei-me nas brincadeiras de rua e na escola que me apresentou uma nova realidade, desconhecida e diferente dos espaços e do ambiente em que vivi e que contribuíram para as minhas experiências físicas e psicológicas, (MOURÃO;  CAVALCANTE, 2011). Na cidade, também, passei por um processo de apropriação com o novo ambiente, com as novas pessoas e o desconhecido.

Consoante com Cavalcante e Elias (2011), esta apropriação psicossocial central na interação do sujeito com o seu entorno, significa pari passu, o domínio sobre estes espaços, objetos, o Grupo Escolar, a rua da minha casa e  do comércio dos meus pais em que eu jogava bola, as brincadeiras de rua, o riacho Araibu, que cortava a cidade de Russas ao meio e  em época de cheia nos tirava de casa, como ocorreu em 1974 e 1985.

Mas tudo era novo, os banhos de rios, das chuvas, a movimentação das pessoas ao atravessar o riacho de canoa que foram me constituindo com novas referências de territorialidade da minha identidade na cidade, sem diminuir as minhas raízes do cheiro do campo, dos animais e das plantas.

Nessa história de minha vida, impregnada de sentidos e significados para este momento especial da minha vida acadêmica, em que narro parte da minha memória afetiva, ainda guardo lembranças, após 50 anos na cidade, lembranças fortes,  ou seja, a minha relação com o sertão, a casa do meu avô, o armazém, a casa da prensa de produção de cera de carnaúba, uma pequena bodega, a minha comunidade, os parentes, amigos (as) dos meus pais, os clientes, trabalhadores, a chuva forte na calçada, as carnaubeiras e tantas lembranças deste tempo, (ver figura 2).

 

Figura 02– Casa do meu avô em que nasci na fazenda Pitombeira - Ilha do Poró - Jaguaruana.

Fonte:  produzida pelo autor, (2020).

Assim, são muitos sentimentos que fortalecem as minhas relações com a natureza e o campo em um processo psicossocial, que se entende por psicologia ambiental[11]. Por isso, escrevo os meus sentimentos e memórias afetivas no seguinte poema:

 

Nasci no sertão / Fui criança, menino, hoje sou cidadão / Vivi entre carnaubeiras e a relva do campo  / O cheiro da palha e da chuva no chão  / Quando penso no sertão fico cheio de pranto  /  Comi os seus frutos, corri pelo tempo  /  As folhas açoitadas pelo vento / Suave é a manhã do sertão  / Em sol ardente corpos trabalham no chão  / Semeia o campo, do solo tira o sustento  / Olho a imensidão das terras por um momento  / E digo, meu Deus esta é a minha nação, (OLIVEIRA FILHO, 2021).

 

Ainda sentindo o cheiro do sertão, fui morar na cidade de Russas e bem próximo ao Grupo Escolar Manuel Matoso Filho, no qual fui matriculado no ano de 1971, no jardim de infância. Meu mundo ficou sendo escola e brincadeiras de rua, bola, revistas e livros. Sempre gostei de ler, mas passei toda a infância e juventude sem saber dos tempos difíceis para o país que era sufocado por uma ditadura civil-militar. E mesmo assim, éramos felizes em nossas inocências e desconhecimento daquele momento até eu adentrar na universidade no ano de 1984 no curso de pedagogia.

Era ano das Diretas-Já e da efervescência do pop rock brasileiro que ganharam as ruas, as mentes e as aspirações do povo brasileiro pela democracia e eleição para presidente. Era também ano de referência da boa música brasileira, ouvidas pelo rádio de pilha, como a banda 14 Bis que cantava naquele contexto “Linda Juventude, página de livro bom, maravilha juventude, tudo de mim, tudo de nós” e também “Sonhos de Ícaro, o que faz de mim ser o que sou, e gostar de ir por onde, ninguém for” do cantor Biafra.

Ou como no final dos anos 70 e início dos anos 80, o grande compositor e cantor Beto Guedes, que em “Sol de Primavera”, contexto de Anistia[12] no ano de 1979, cantava em versos que àquela juventude,  que lutou e semeou muitas canções ao vento, agora desejava  ter suas vozes juvenis ouvidas, não mais sufocadas no que faltava ainda sonhar,  quando muitos se perderam naquelas lutas, torturados, massacrados, desaparecidos e assassinados. Em o Sal da Terra, Beto Guedes, membro do movimento do Clube da Esquina[13], convida a todos para combater a opressão e construir uma vida nova através de nova atmosfera de sentimentos, banhados pela generosidade do Planeta Terra, por ainda ser o mais bonito e cheio de vida da Via Láctea.

Como convida Ivan Lins (1980) para um “novo tempo, apesar dos castigos, estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos. Da força mais bruta, da noite que assusta, estamos na luta, pra que nossa esperança seja mais que a vingança, seja sempre um caminho que se deixa de herança”. Além do mais, naquele contexto muitos jovens não conseguiram sobreviver e por isso, Beto Guedes (1979) escreveu e cantou que “ já choramos muito, muitos se perderam no caminho, mesmo assim não custa inventar uma nova canção. A lição sabemos de cor, só nos resta aprender”. E no atual contexto não queremos apenas sobreviver, chorar e sofrer, mas viver com intensidade porque “viver é melhor do que sonhar”, já dizia Belchior (1976).

Nesse sentido, os anos setenta foram de muita efervescência, de muitas descobertas, de muitos sonhos, estudos e jogos de bolas, mas foram, também, de muita inocência e desafios. Nesse contexto é importante enfatizar que meus pais precisavam administrar a casa (economia) para dar conta de uma família de oito filhos, todos na escola. Minha mãe precisava pagar a “caixa escolar” para a direção da escola, além de aquisição de livros. Assim, tive o privilégio de crescer entre livros, músicas, bolas e brincadeiras de bola de meia e bola  de gude e, como diz uma letra de uma música que me faz lembrar que “há um passado no meu presente e sempre um moleque morando no meu coração”.[14]

Tínhamos caixas de livros e revistas em quadrinhos faziam parte de nossa existência. A vida era escola, jogo de bolas e brincadeiras nas ruas, mas à noite gostava de fazer as minhas leituras.  A minha mãe, mesmo com pouca leitura, acompanhava a nossa trajetória na escola e sempre conversava com as professoras. O seu objetivo era nos ver formados. Meu pai fazia todo o esforço e nunca nos faltaram livros e material para estudo. Ele fazia coleção de nossos boletins escolares de orgulho de nosso crescimento na escola.

Lembro-me que toda a manhã, no Grupo Escolar Manuel Matoso Filho, tínhamos que cantar o Hino Nacional e também ouvir música de exaltação à ditadura civil-militar com o título “Eu Te Amo, Meu Brasil” dos compositores Dom e Ravel e interpretada em 1970 pela banda de rock Os Incríveis. Nos meus pensamentos parecia que esta música era mais importante do que o próprio Hino Nacional e nos invadia com aquele ufanismo aŕido e inexato.

Nesse contexto, Paulo Freire foi preso, cujo único crime foi tentar alfabetizar o povo brasileiro, mediante o Programa Nacional de Alfabetização que seria lançando em 13 de maio, mas extinto 14 de abril, após o golpe daquele ano de 1964. Ali foi extinto o programa de lançar 60.870 Círculos de Leitura para alfabetizar mais de 1 milhão de brasileiros, tendo como referência a experiência de Angicos.

Alheio a essa situação do país, no Grupo Escolar, estudei entre 1971 - Jardim de Infância - até a quarta série que concluí no ano de 1976. A preocupação dos meus pais era tão grande que tínhamos também uma professora particular para nos ajudar na correção das tarefas de casa, professora que ainda utilizava a palmatória no momento de conferir a tabuada de todos nós. São muitas lembranças e memórias e a infelicidade da estrutura do Grupo Escolar Matoso Filho que não existe mais, porque o prédio acabou de ser demolido; não apenas tijolos e paredes foram derrubadas, mas as nossas memórias e uma história de muitas gerações que lá estudaram e que constituía um valioso patrimônio imaterial.

O Grupo Escolar ficava próximo a minha casa, à mercearia de meus pais, portanto, há um vazio quando agora visito os meus irmãos que por lá ainda moram. No Grupo Escolar, tinha o parquinho, o pátio, a quadra de esportes e era uma escola acolhedora, desde o Jardim de Infância com a professora Ogarita, professora de muitos ex-estudantes, memórias e lembranças. Segundo Candau (2016), sem memória, há apenas esquecimento. Por isso, identidade e memória, através da dialética, conjugam-se para formar uma trajetória de vida.

Após a conclusão da quarta série, no ano seguinte, fui matriculado no Colégio Estadual Flávio Marcílio e segui estudando, lendo, ouvindo música e praticando esportes até o ano de 1983, ano da minha primeira paixão. Era “uma menina veneno que tinha um jeito sereno de ser”[15], mas gostava de ouvir “aquarelas” de Toquinho e tantos outros sucessos da música popular brasileira, pelo rádio até horas da noite.

Eu era nota dez nas ciências humanas, mas na universidade, a história da educação, a sociologia e a filosofia me fizeram enxergar um outro país e uma nova cosmologia sobre o mundo, o mundo das ciências, da sociologia, da filosofia e da história da educação. Eu não sabia, mesmo em face dos desafios da vida, que era privilegiado em meio a um contingente de brasileiros e brasileiras que não tinham direito à escola, como o povo, habitante do meio rural e muitos outros brasileiros habitantes das cidades.

Nesse sentido, como  bem escreveu Lauro de Oliveira Lima[16], quando observa que o Estado nunca teve a preocupação com a educação do povo de Pombal a Passarinho”.  Por isso, de acordo com Lima (1969), as elites brasileiras nunca desenvolveram um projeto de escolarização do povo brasileiro, escolarização universal e gratuita que possibilitasse o desenvolvimento do país. No entanto, a “história é sempre imprevisível; em sua dialética tudo se transforma”, discorre Franco (2021), em sua carta a Paulo Freire.

Vale ressaltar, que aos treze anos,  concluí a leitura do livro Capitães da Areia, de Jorge Amado, à luz de lamparina, quando a cidade vivia de apagões quase toda a noite. Livro que contava histórias de crianças abandonadas, que viviam em um trapiche à beira mar e que eram resultadas, também, de famílias abandonadas pelas políticas públicas. Nesse sentido, não eram apenas as crianças do meio rural a quem não eram ofertadas a escolarização; nas periferias de nossas cidades, as escolas, também, não chegavam.

E como escreve o autor e escritor baiano, que também escreveu O Cavaleiro da Esperança.  “[...] E grande parte dos Capitães da Areia dormia no velho trapiche abandonado, em companhia de ratos, sob a luz amarela. Na frente a vastidão da areia, uma brancura sem fim”, (AMADO, 1995, 21).

Era o ano de 1978, Copa do Mundo na Argentina - ano de muitas dificuldades, porque o comércio do meu pai foi assaltado e nos deixaram com quase nada, mas seguimos em frente. Dois anos depois comprei a coleção completa de Jorge Amado com o primeiro salário, trabalhando em uma cerâmica.  

Aí já germinava em mim um ser social, objetivando compreender o país em sua complexidade, mas vivíamos uma educação bancária[17] que não nos ajudava a tirar o véu, que nos impedia de perceber a realidade brasileira e não nos ajudava a desvelar a realidade, cerceando a nossa imaginação, a nossa capacidade de criar e de criticar pois “os homens são vistos como seres da adaptação, dos ajustamento”, (FREIRE, 1987,p. 39).

 No entanto, é imperativo desenvolver a pedagogia da esperança, porque o que move o verdadeiro educador e a verdadeira educadora é oportunizar aos educandos (as) situações e aprendizagem para desvelar a realidade e transformá-la em processo de construção e reconstrução da práxis docente no chão da escola. Além do mais, o professor é sempre um ser inacabado e em reconstrução.

 

A universidade e o educador em construção

 

 Então, tive a oportunidade de chegar à universidade no curso de pedagogia, mas o meu sonho era fazer o curso de agronomia, porque as ciências da terra e o cheiro do sertão estiveram sempre impregnados na minha gênese. Importa lembrar que, nesse mesmo ano, tive a oportunidade de entrar no curso de Especialistas da Aeronáutica e acabei optando pela Pedagogia, apesar das três cartas do comandante, contendo como última frase “a diferença entre covarde e pessoa que luta é que os covardes desistem, não lutam”. Sinto hoje, após 30 anos na educação, que fiz a escolha certa.

Vale destacar que morar no interior e ter optado por constituir família, dificultaram realizar estudos acadêmicos mais avançados e isso explica um pouco o porquê de só agora, depois de 30 anos de vivência no magistério, eu tenha adentrado no Mestrado Acadêmico em Sociobiodiversidade e Tecnologias Sustentáveis (MASTS), da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente (UFC) e das quais tenho orgulho de ser discente.

Vale ressaltar que gratidão e reconhecimento são sentimentos que devem ser cultivados e exercitados por serem nobres da essência humana, principalmente, vindo do aprendiz aos seus mestres, que valorizados e valorizadas apontam o futuro de uma nação. E nesse sentido, a minha gratidão aos meus mestres, minhas mestras porque pude sentir as suas humanidades, generosidades em minha formação e que se reverberam em um dos pensamentos mais conhecidos de Charles Chaplin no discurso do filme o Grande Ditador (1940) “Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas!

Nesse sentido, o que importa é que vivi intensamente muita pesquisa, muitas leituras nesses anos que me fizeram olhar o mundo com outros sentimentos, mas que também, as salas de aula, a docência, o magistério e minha família me fizeram crescer com mais humanidade na difícil arte de ser professor em um país com tantas possibilidades e potencialidades; um país condenado a ser um subcontinente e sua vocação história de colônia exportadora de produtos primários, condenando o povo brasileiro a condição de subdesenvolvido, conforme disseca Martins (2010), em o “Cativeiro da Terra”.

No entanto, contra muitos prognósticos de quem precisa trabalhar, entrei na universidade. Assim, em l984 comecei o curso de Pedagogia sem um interesse maior, e, ao longo dos semestres, algumas disciplinas começaram a me chamar atenção e fui descobrindo, em mim, um ser humano mais consciente, mais cidadão, mais politizado e preocupado com os destinos do país e mais convicto de meu amor ao sertão. 1984 foi um ano importante no aspecto estudantil e profissional, que abriram novas visões de mundo, precisamente a minha consciência de ser social e educador.

Conforme Freire (1987, p. 10), “a consciência do mundo e a consciência de si crescem juntas e em razão direta; uma é a luz interior da outra, uma comprometida com a outra”. Por isso busco aqui tecer, também, as minhas autodescobertas, a minha autoconsciência sobre o mundo e cidadania planetária[18]. Dessa forma, para Freire (1979, p. 47) “não se pode chegar à conscientização crítica apenas pelo esforço intelectual, mas também pela práxis: pela autêntica união da ação e da reflexão.

Neste mesmo ano, também passei a estudar música e participar da banda de música do município, fazendo uma trajetória de estudos em músicas clássicas e concertos, com a obra O Guarani”, de Carlos Gomes e autores Johann Strauss com o seu Danúbio Azul. E assim, fui organizando tempo de estudos na universidade, trabalho e estudos musicais e já não tinha tempo de praticar esportes.

A música me projetou em outra dimensão da linguagem universal, de uma sensibilidade mais apurada, do ouvido mais exigente, não só pela melodia, mas pela harmonia e arranjos musicais que contribuíram na minha formação. Um educador humanista, orientado na formação humana, a partir de uma relação dialógica e problematizadora com o mundo (FREIRE, 1987).

Apesar dos estudos na universidade, seminários, pesquisas, leituras, ainda não tinha fluído em mim o educador que sou hoje. Custou-me acreditar que eu poderia ser um professor e mais do que isso, um educador. No entanto, Freire (2001, p. 58) nos ensina que: ninguém começa ser educador numa certa terça-feira às quatro horas da tarde. Ninguém nasce educador ou marcado para ser educador. A gente se faz educador, a gente se forma, como educador, permanentemente, na prática e na reflexão sobre a prática”. Diz ainda o mestre: “É práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo”, (FREIRE, 1987, 43).

Começo, então, uma experiência fantástica na docência em sala de aula e em cursos de formação continuada ao longo de minha vida profissional. Na pedagogia, adentrei em estudos de educação infantil de estudiosos e pesquisadores como Piaget, Montessori, Wallon, Emília Ferreiro, Freinet e depois Vygotsky com quem tenho uma identificação muito forte na práxis docente, enquanto professor mediador que procura ensinar e avaliar na zona de desenvolvimento proximal[19], ou seja, o que é importante é aquilo que o aluno pode fazer com a ajuda do professor ou de outra pessoa, um colega, por exemplo, com estruturas mais amadurecidas para o trabalho em aprendizagem cooperativa.

Por esses estudos, fui selecionado para coordenar programas de educação e nutrição em creches de comunidades rurais, tendo como sede a Escola Agrícola Padre Pedro de Alcântara, na zona rural em Russas nos anos 80.

Além de coordenação de creches, eu era professor e formador das professoras e professor do município de Russas. Para dar conta desta tarefa, precisava estudar, aprender músicas infantis e atuar no acompanhamento das professoras no trabalho com as crianças. À noite, eu lecionava história e geografia na Escola de Comércio Pe. Zacarias Ramalho, antigo segundo grau profissionalizante no qual desenvolvi grandes aprendizados na práxis docente.

O trabalho comunitário nas creches, o envolvimento com as crianças e seus pais foram importante e enriquecedor para o meu trabalho como educador, pois para coordenar os programas de creches e pré-escolar, tive que fazer vários cursos, visitar e conhecer os trabalhos pedagógicos e nutricionais de outras creches, inclusive na capital e experiência em outros estados. Foi um aprendizado que me despertou para a educação infantil de uma forma mais concreta. Também coordeneir as creches do município de Russas e participei do curso de capacitação de educadores infantis na qualidade de participante e depois multiplicador.  

Em 1993, passei no concurso do estado do Ceará para professor. Fui lecionar em escola pública estadual na cidade de Aracati como orientador de aprendizagem no Sistema de Telensino e professor de Matemática  do ensino fundamental de 7ª  e  8ª séries.  No ano seguinte, fui transferido para Russas e fui lecionar ciências no ensino fundamental e biologia no Colégio Estadual Flávio Marcílio, do qual fui aluno entre os anos de 1977 e 1983. Importa esclarecer que nesse momento, eu era professor do município de Russas lecionando ciências e matemática no 5º e 6º do ensino fundamental.

Importa destacar que ainda fiz um ano no curso de ciências, mas tive que abandonar por conta do trabalho. Contudo, em 2018 resolvi preencher uma lacuna na minha vida acadêmica, que foi ter concluído a licenciatura em biologia pela UECE. Foi um momento reconfortante do ponto de vista do desenvolvimento de novos conhecimentos e da qualificação profissional como professor de biologia pelo qual desenvolvi uma pesquisa sobre Educação Ambiental.

Importa destacar que no ano de 2012 eu concluí o curso de bacharelado em administração pela UFC com o tema proposto “Conceitos e Práticas de Gestão Ambiental: Estudo de Caso em uma Organização Pública” sob a orientação da Profª. Ms. Aline Maria Matos Rocha.

Por isso, este esforço evidencia o quanto tenho buscado me qualificar em uma práxis docente interdisciplinar para dar conta de questões de uma atualidade muito complexa e que, segundo Pistrak (2011), o objetivo fundamental da escola, através da práxis docente com educandos (as), é penetrar na realidade para compreendê-la, transformá-la e recriá-la como propõe também Freire (1996). Gestores (as) e educadores (as), precisam conhecer os seus educandos e educandas, por isso tenho orientado que a avaliação formativa precisa ter vários instrumentos, além das diagnósticas, as auto avaliações.

Vale destacar o quanto é desafiante ensinar diante da precarização do trabalho, no entanto, eu adentrava noites de estudos, dedicando-me o máximo possível aos estudos e ao trabalho, buscando ser um professor focado na aprendizagem dos alunos. Então, o Colégio Estadual de Russas, do qual fui aluno entre 1977 a 1983, era uma escola com grande matrícula e com turmas em média de sessenta alunos. Eram muitos desafios na sala de aula, dispondo apenas de giz, apagador e quadro verde.

A preparação da aula tinha que ser muito boa por conta de todos os desafios à docência. Assim, ao longo da história docente, tive a experiência em educação infantil, professor de ciências e matemática do ensino fundamental; professor de história, geografia,biologia no ensino médio, além orientador de aprendizagem no Telensino e Tempo de Avançar (Educação de Jovens e Adultos). Mas lecionar biologia sem a formação adequada foi um desafio muito grande no antigo segundo grau. Foram dias e noites intensos de estudos teóricos e práticos que me fizeram aprender a ensinar a cada instante em sala de aula, com o foco na aprendizagem dos alunos.

Nessa trajetória do fazer docente, eu tinha consciência da necessidade da boa preparação das aulas. Assim, adentrava noites e dias após dias estudando, lendo, resolvendo exercícios, elaborando apostilas, preparando aulas e estratégias de ensino para dar o melhor e não passar constrangimento diante de meus alunos, já que a Biologia é uma ciência muita dinâmica e abre espaço para muitas perguntas, conforme o conteúdo ministrado.

Foram necessários vários meses para ter uma visão mais consciente do conteúdo programático e a melhor maneira, ou seja, a melhor metodologia, de como fazer com que os alunos participassem do processo de ensino-aprendizagem, buscando, também, um melhor relacionamento com eles. Conquistá-los com o meu zelo e compromisso foi o primeiro objetivo atingido. Então, eu fui aprendendo com os meus alunos e eles comigo, como orienta Freire (1996), sobre o professor aprendiz que tem consciência do inacabado.

A partir daí, com a participação cada vez maior dos alunos nas atividades em sala de aula e com o passar dos dias, um maior domínio dos conteúdos, tudo foi ficando mais fácil. Além do mais, o relacionamento professor-aluno melhorou muito a ponto de não haver necessidade de estar chamando a atenção como era quase corriqueiro.

Aprendi que é importante valorizar o ponto de vista do estudante, adaptar os conteúdos para atingir suas suposições e avaliar a aprendizagem no contexto do ensino. E como ensina Freire (1996) ensinar não é transferir conhecimentos, mas criar possibilidades para que os alunos possam se expressar na construção de conhecimento colaborativo e para isso, o professor precisa estar aberto às indagações dos sujeitos aprendentes.

Também aprendi que é preciso encorajar e aceitar a autonomia do estudante, tê-lo como um pensador, criador e construtor do próprio conhecimento. Que é necessário também, criar um ambiente de aprendizagem onde os alunos possam ter a oportunidade para a produção de conhecimento, aprendendo pelo encorajamento da interação estudante a estudante, iniciação de lições que fomentam o aprendizado cooperativo, criando oportunidades para os alunos serem expostos ao currículo interdisciplinar.

Mas além da mudança do paradigma educacional, é necessário que o professor tenha mais compromisso com a educação e seja mais político no sentido de estar formando novos cidadãos que necessitam do nosso país, para que a escola se transforme em vida. Ou uma escola que desenvolva uma educação para além do capital, visando uma prática educacional com o objetivo de mudanças, que, de acordo com Mészáros, (2008, p. 50) “[...] o papel da educação, tanto  é soberano para elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução”.

Assim, essa reflexão pedagógica e epistemológica na minha trajetória de professor, é importante por possibilitar compreender os desafios docentes. Como aponta Albornoz (2012), em referência à Hannah Arendt, o trabalho no mundo contemporâneo possa estar reduzido ao labor rotineiro com único objetivo à sobrevivência e que vai de encontro à práxis transformadora proposta por Marx (2007).  Como caracteriza Sousa Jr. (2020, p. 32) “a práxis política dos trabalhadores cujo sentido transformador reside nas mudanças das condições históricas de exploração sob as quais se encontravam”.

Seguindo minha trajetória de vida, no final do século XX deixei a sala de aula para adentrar na Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação (CREDE 10) para ser professor multiplicador em tecnologias educacionais e ciências da educação de uma forma geral.

Para desempenhar essa função, precisei fazer uma especialização em Informática na Educação apresentando a monografia para uma banca de professores no Campus do Itaperi da Universidade Estadual do Ceará (UECE) com o título “A Informática Educativa na Aquisição da Leitura e Escrita''. Foi novamente um momento de aprendizado e experiência.  E foi da minha orientadora, de pensamento marxista, professora Dra. Maria Susana Vasconcelos Jimenez, com a qual aprendi muito e tenho admiração, os comentários mais críticos por conta das minhas alegações congruentes entre as teorias de Piaget e Vygotsky na aprendizagem.

Foram críticas pertinentes, tendo em vista que na teoria piagetiana o professor formula bons desafios para criar no aprendente conflitos cognitivos, entre assimilação e acomodação no processo de ensino, enquanto que em Vygotsky, o professor passa a ser um mediador, atuando na zona de desenvolvimento proximal através de pistas, ajuda sua ou de outra pessoa, no entanto, cada teórico em campos diferentes - liberalismo e socialismo, razão das críticas. No entanto, a professora Dra. Roberta, que estava compondo à banca pegando cópia da monografia e apresentando ao público com o seguinte comentário: “parabéns Luis, todo o curso da especialização está sintetizado nesse seu trabalho acadêmico”.

Nesse processo como professor multiplicador (formador), adentrei em várias áreas da educação e modalidades de ensino, como Educação Especial, Educação de Jovens e Adultos, Educação Ambiental, Educação fiscal, Informática na Educação e Gestão Escolar. No entanto, nunca me encaixei em aspectos da gestão escolar por minha relação íntima com ensino e aprendizagem, mas foi a Educação Ambiental o primeiro fator importante da aproximação da minha história acadêmica com algo mais profícuo na arte de ser professor e cidadão do mundo e recentemente com Educação do Campo. Por quê?

Porque sinto que há congruências entre Educação do Ambiental e Educação do Campo, por exemplo, quando há uma intencionalidade pedagógica, segundo Caldart (2002, p. 23) de “educar e reeducar o povo que vive no campo na sabedoria de ser “guardião da terra” e não apenas como o seu proprietário. Ou, na agroecologia, por se apresentar como uma ciência interdisciplinar que adentra em várias áreas das ciências, como a ecologia e até da etnociências, quando aponta que a questão de orientação ao agricultor camponês está no humano e seus processos de apropriação de saberes, suas representações e produções sociais na relação com a natureza, não no foco da produção em si.

Sobre esta questão, Caldart (2017, p. 09) observa que:

 

A agroecologia integra um conjunto diverso e complexo de conhecimentos com alto valor científico e cultural. Sua chave de análise da realidade está nas relações e na abordagem dos agroecossistemas como totalidade, explorando vínculos entre natureza, produção, política e cultura.

 

Boff (1999), no seu livro “Saber Cuidar'' observa a necessidade de aumentar a consciência pelo cuidado do planeta Terra e também das pessoas dizimadas pela fome em que a solidariedade precisa emergir nessas consciências e que se reverbera no pensamento de Caldart (2002), quando a pesquisadora discorre sobre a importância de ensinar os jovens para cuidar da terra e nesse processo aprender algumas lições de como cuidar de todas as formas de vida, incluindo, o ser humano.

Nessa perspectiva, é imperativo destacar  o Art. 1º da Lei nº 9.795/99, que  dispõe sobre a educação ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências:

 

Entendem-se por educação ambiental os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade, (BRASIL, 1999, p.1).

 

Nessa perspectiva, iniciei, também, a atuação como professor formador ambiental, participando de muitos cursos, seminários, oficinas como aprendiz e estudioso no início, deste século. E nessa trajetória, coordenei todas as Conferências Infanto-Juvenil pelo Meio Ambiente - CNIJMA[20] - e do Programa Vamos Cuidar do Brasil com as Escolas, criado pelo MEC, a partir dessa primeira conferência, como política de induzir e engajar jovens delegados e delegados eleitos (as) nestas conferências e com seus respectivos professores.

A partir deste programa, participei como professor formador na orientação de jovens para a criação da Comissão de Meio Ambiente e Qualidade de Vida nas Escolas - Com-Vida[21], e na criação da Agenda 21 Escolar - Agenda Ambiental Escolar nas escolas da regional da CREDE 10, em Russas e depois, na regional da CREDE 12, em Quixadá, já no ano de 2013.

Mas um fato que me marcou, quando tive que deixar a sala de aula no ensino médio foi a manifestação de alunos, surpreendendo-me com uma despedida muito emocionante. Em especial, um aluno fez um comentário, que eu não havia refletido antes. Disse o aluno: “professor, o Sr. vai para a CREDE, mas lembre-se que o seu lugar é na escola, porque o Sr. se preocupa com a nossa aprendizagem”. Assim, lembrei-me de um pensamento de Paulo Freire, quando afirma que o educador se eterniza em cada ser que educa, ou seja, que a educação é acima de tudo um ato de amor, de coragem para repensar a nossa práxis docente.

Estes sentimentos dos meus alunos me fizeram refletir sobre a escolha acertada de ser professor e por ter aprendido muito com o mestre Paulo Freire na educação infantil, principalmente. Na sala de aula, eu sempre busquei colocar a alma e os ensinamentos do mestre do livro Pedagogia da Autonomia. Fazer o aluno pensar, não necessariamente igual a mim, mas desvelar o mundo e, como diz Marx, (2007, p. 611) “os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras, o que importa é transformá-lo”. E os ensinamentos  de Freire (1987, p.50), na perspectiva de que um outro mundo é possível:  [...] não há palavra verdadeira que não seja práxis. Daí, que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo”.

Outro momento que reforça esta minha visão – foco na aprendizagem dos alunos e por ter desenvolvido durante a vida docente, uma avaliação formativa, foi uma mensagem de uma aluna de Orós – do curso semipresencial de graduação em Administração Pública, com a seguinte mensagem


De: MARIA LEUDA MÁXIMO LOPES

Data: 27/04/2019 19:09:26

Assunto: Agradecimento


Para: Luis Moreira de Oliveira Filho,

Caro Professor Luis

Quero parabenizá-lo pelo seu belo trabalho e agradecer por ainda ser um professor que se preocupa com o aprendizado dos seus alunos. Eu não sou uma aluna das mais estudiosas, sempre estudo para conseguir ser aprovada, mas, nessa disciplina eu quis aprender. Fiquei encantada com suas aulas, porque enxerguei no Senhor muita sabedoria e muita vontade de repassá-la.

Passei por alguns problemas pessoais durante o período da disciplina, tive muita dificuldade para elaborar o trabalho e diversas crises de ansiedade, mas, todos os dias eu abria suas mensagens e via frases inspiradoras e motivos para seguir em frente.  Obrigada por não desistir de seus alunos e por me incentivar a não desistir.

Não sou muito boa com palavras então procurei na internet algo que expresse minha gratidão e encontrei a seguinte mensagem:

“Há pessoas que marcam a nossa vida, que despertam algo especial em nós, que abrem nossos olhos de modo irreversível e transformam à nossa maneira de ver o mundo. O senhor foi uma dessas pessoas!

Os seus ensinamentos foram muito além dos conteúdos do currículo. Tivemos aprendizados importantes para a vida. A sua missão vai muito além da missão de um professor, o senhor é um verdadeiro mestre. Soube despertar a nossa admiração e se tornou uma inspiração para nós.

Muito obrigado pela sua dedicação e paciência ao lecionar. Só posso agradecer por ter feito parte dessa caminhada e tenha certeza de que tudo o que aprendemos, vamos levar por toda a nossa vida. “

 

Ao Senhor, toda a minha gratidão.

Maria Leuda – aluna Pólo Orós.

 

Importante observar que fiquei muito emocionado com este depoimento da aluna e a minha responsabilidade cada vez maior com o meu desenvolvimento profissional-docente. Nessa caminhada, eu tinha um objetivo que era ampliar as minhas experiências na docência.

 Então, no início do século XXI iniciei, a docência no ensino superior nos cursos de pedagogia, administração e educação física. Por essas experiências na docência do ensino superior, busquei a formação em Administração pela UFC e depois a formação em Ciências Biológicas, em processo contínuo de qualificação da docência. Então, fiz-me professor muito jovem e fui pai aos 22 anos. Uma vez a minha esposa disse: “minhas amigas disseram que não gostariam de casar com um professor, porque toda vez que nos visita, encontra-me debruçado em livros e papéis”  

No contexto apresentado de minha história de experiência no labor docente, muitas vezes enfrentando a precarização docente com longa jornada de trabalho e que afeta a vida de muitos trabalhadores educadores (as), inclusive de outras áreas, é forçoso refletir em Marx (2011, p. 23) quando este pensador discorre que:

 

Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado.

 

Nesse sentido, o materialismo histórico-dialético é uma bússola que orienta o pesquisador para o estudo dos fenômenos sociais, a partir da análise da realidade concreta, tensionada entre movimentos e contradições. Para Kosik (1976, p. 13), “a atitude primordial e imediata do homem, em face da realidade, não é de um abstrato sujeito cognoscente, de uma mente pensante que examina a realidade especulativamente, porém, a de um ser que age objetiva e praticamente, de um indivíduo histórico”. Nesse sentido, para este pesquisador, a dialética, reputa as coisas fixas porque propõe compreender o mundo para além das aparências.

Nesse momento de grande escuridão e do negacionismo das ciências, a luta de professores (as) tem sido renhida em frente à precarização e uberização do ensino, em tempos de pandemia do covid19 e nos tempos híbridos e presenciais, através de desafios e novas aprendizagens, em que o educador está para além das tecnologias, enquanto ser consciente da missão de instaurar novos mundos.

É nesse momento que as leituras e ensinamentos de Freire, Piaget, Vygotsky, Wallon, que nos ensinam o que é ser professor mediador, que problematiza, que dialoga, que sabe atuar na Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), que sabe problematizar para criar “conflitos cognitivos” entre o que o aluno sabe e o que deveria saber, mas que trabalha dentro de uma visão de interação afetiva, do zelo, de uma pedagogia desmassificada, diferenciada e que atinge as necessidades de aprendizagem dos sujeitos.

Da ação, reflexão e ação, sempre somos aprendentes, a partir dos nossos erros no planejamento e na condução das aulas. Vale ressaltar que o pensamento de Marx (2007) referenciado aqui me faz refletir sobre a bela carta a Paulo Freire, escrita por Franco (2021) que traz  reflexões pertinentes sobre monstruosidades que emergiram nesse país, a partir das narrativas fatalistas neoliberais.

Tais narrativas acabam tendo ressonâncias nas escolas, mas miramos nos ensinamentos sobre a resistência de uma Pedagogia da Esperança, da Pedagogia do Oprimido para exorcizar esses demônios que nos aprisionam, conforme avisou Freire (1987), a partir de Franco (2021), quando discorre que, se a pedagogia não for política, ela se transformará em instrumento de controle e manipulação. Fernandes (1994, p. 198), também já avisava: feita a revolução nas escolas, o povo fará nas ruas.

Nessa perspectiva, a necessária pedagogia que fizesse o aluno problematizar e ler o mundo, tão bem como escrevia Patativa do Assaré: Nordestinos sim, nordestinados não - “não é Deus quem nos castiga, nem é a seca que nos obriga vivermos dura sentença”, (ASSARÉ, 1990. p.25).

Nesse sentido, vivenciamos tempos sombrios e os estertores de um governo que massacrava as ciências, pregava o negacionismo em todas as suas formas e conteúdos, desintegrava o Estado brasileiro nas suas políticas públicas, colocando as riquezas e as potencialidades deste país a serviço das elites e excluindo o povo do orçamento público, conforme denunciava o presidente Lula em suas peregrinações pelo país. Nesse sentido, declamava Patativa do Assaré, com certeza um dos homens cearenses com os sentidos sociais mais apurados deste país: “O que mais dói[22] “[...] É ver os votos de um país inteiro, desde o praciano ao camponês roceiro, pra eleger um presidente mau”.

Desta feita, concordando com Franco (2021), vivemos, também, barbáries pedagógicas que nos dificultam interpretar esse momento de escuridão nas políticas públicas, em que as reformas educacionais são tocadas a partir da fratura da democracia brasileira no ano de 2016, fortalecendo movimentos como a Escola sem Partido[23] e reformas, como o Novo Ensino Médio e que estão na contra-mão de uma pedagogia como “prática social política que implica concepção de mundo, de homem e de sociedade, com um ensino crítico, dialogante e entusiasmante”, (FRANCO, 2021, p. 53).

Então, este momento foi  para se compreender a realidade brasileira a partir de nós, de nosso trabalho, no chão da escola e do local onde nos fazemos professores (as), educadores e técnicos da educação. Como professor e técnico de uma instituição, uma nova realidade, uma nova instituição que me ensinou e me deu espaços para expressar novos sentimentos, experiências e principalmente aprender a ser melhor como educador na condição de superintendente escolar da CREDE 12 a partir de fevereiro de 2013.

 

A nova realidade – CREDE 12

 

Ir para a região Central do Ceará talvez revele em mim um pouco do que sou – ser aventureiro, ter receios, mas buscar a coragem de enfrentar novos mundos, aprender com novas pessoas e exercer com dignidade a minha profissão, mesmo não estando em sala de aula, mas ficar longe da família foi uma decisão que não pude tomar sozinho.

Então, busquei, integrada à função de superintendente na CREDE 12, a função de professor formador-ambiental, coordenando em 2013 a 2016, a IV Conferência Infanto-Juvenil pelo Meio Ambiente, além das Mostras de Educação Ambiental que buscava de certa forma o objetivo de enraizar a Educação Ambiental no currículo do ensino médio, mas que pari passu, foi sendo extinta. Primeiro com a incorporação ao Ceará Científico, depois com a extinção das categorias de Educação Ambiental e Artes.

Como superintendente escolar, sempre entendi que o cerne do trabalho, para além das demais funções, era fortalecer a gestão pedagógica, as práticas pedagógicas de gestores e de seus professores, como a gestão da sala de aula (que é coração pulsante de docentes e discentes – lugar de exercer sonhos e produzir sonhos entre educadores (as) e educandos (as)); que era necessário fortalecer o processo de avaliação integrado ao processo de ensino. Desta forma, busquei realizar um trabalho intenso, com presencialidade contínua, presencial e tempo-escola, considerando o contexto de cada escola. Se pequei, pequei por exageros na função, não por omissão ou negligenciamento.

Então, nesta função, foram momentos de muitos aprendizados porque precisei compreender o currículo de cada escola, sua cultura organizacional, além da gestão proposta. Tentei fortalecer a ideia de escola sustentável, que é a escola que desenvolve as condições necessárias para o ensino e aprendizagem – escola sustentável do ensino e da aprendizagem, com os seus espaços educadores sustentáveis (paredes que falam da gestão, do cuidado e das intencionalidades pedagógicas); da gestão democrática, do seu currículo e do protagonismo de jovens via a Comissão de Meio Ambiente e Qualidade de Vida – ComVida – ComVida para o estudo e para a aprendizagem do cuidado das cinco casas (o eu, a minha casa; minha cidade com a minha rua, meu bairro; o meu território (o nosso bioma; e nosso ecossistema, com ações individuais e coletivas.

Portanto, foram momentos intensos, de interação, de comunicação, de mediação de muitos aprendizados entre acertos e erros. Cada diretor (a), cada coordenador (a) foi uma semente a germinar para que eu desenvolvesse em mim, a arte da sabedoria de exercer superintendência com tranquilidade, mesmo sabendo que sou oceano de muitas inquietações e preocupações de não errar nos processos; que o diga este processo de lotação de professores e professoras.

Claro que com gestores tive uma relação profissional mais profícua, outros nem tanto, talvez pela falta de oportunidade. Agradeço imensamente os convites para falar de educação, de meio ambiente – algo que venho cultivando a algum tempo. Espero ainda algum momento em alguma escola para compartilhar um pouco da minha experiência.

Por isso, guardo comigo cada momento que fui bem acolhido em cada escola que estive como nuvem passageira, desde o ano de 2013 a 2025 – Escola Emanuel, Escola Assis Bezerra, Escola Alfredo Machado, Escola João dos Santos de Oliveira, CEJA João Ricardo da Silveira (2013); nos anos posteriores: Escola Maria Edilce, Jacob Nobre, Andrade Furtado, Escola do Campo Irmã Tereza, Liceu de Quixeramobim; e no atual momento: Escola Emanuel, Assis Bezerra, Martins Rodrigues, Guilherme Correia e João Araújo, que infelizmente não pude ter uma relação mais profícua e do exercício da superintendência, pelos motivos já conhecidos.  

Então, foram várias educações experienciadas na CREDE 12 – Educação de Jovens e Adultos, Educação Especial, Educação Ambiental e Educação do Campo. Sobre Educação do Campo vale destacar a experiência de uma política educacional contextual na rede de ensino estadual em área de reforma agrária. Nesse contexto de descobertas comecei a participar de eventos como seminários, formações e semana pedagógica dessas escolas. Foram eventos que me permitiram conhecer um pouco de suas experiências e de seus educadores (as) e gestores. Desta forma, estas experiências possibilitaram um conhecimento mais profícuo das políticas públicas do governo do Ceará.

Vale mencionar que longo dos últimos dozes anos na função de Superintendente da CREDE 12, participando de eventos, formações e realizando acompanhamento técnico-pedagógico me fizeram compreender a importância da política pública estadual para as escolas de ensino médio do campo em área de assentamento rural.

Nesse processo, foi possível compreender que o currículo para os sujeitos do campo está centrado na formação humana e na luta ao modelo do agronegócio através, de uma nova proposta para o campo, que é a agroecologia, em que o germe criador está de acordo com Altieri (2012, p. 16) na seguinte proposição:agroecologia é um conjunto de conhecimentos e técnicas que se desenvolvem a partir dos agricultores e de seus processos de experimentação”.

Certamente, Paulo Freire vivo fosse, estaria muito feliz ao perceber que existem escolas que trabalham a epistemologia curiosa dos seus alunos através de uma pedagogia que se pretende fortalecer as identidades dos povos camponeses, na seguinte questão:

 

O que se pretende com o diálogo, em qualquer hipótese (seja em torno de um conhecimento científico e técnico, seja de um conhecimento “experiencial”), é a problematização do próprio conhecimento em sua indiscutível reação com a realidade concreta na qual se gera e sobre a qual incide, para melhor compreendê-la, explicá-la, transformá-la (FREIRE, 2013, 44).

 

Como admite Molina (2004), as políticas educacionais não atingiram na essência, as necessidades de uma formação escolar para os sujeitos que moram e vivem no semiárido. Ou seja, a Educação do Campo para esta pesquisadora, precisa recriar o campo como espaços de possibilidades, seja na produção de alimentos saudáveis, do fortalecimento da identidade camponesa, de suas culturas, da policultura e dos sistemas sociobiodiversos, cultivo e criação de animais com a conservação das espécies nativas.

Nessa perspectiva, de acordo com esta pesquisadora, as escolas do campo se fazem com os seus sujeitos na conservação da biodiversidade nativa, através de estratégias curriculares que oportunizem o desenvolvimento de tecnologias apropriadas, sustentadas pelos saberes locais, tendo como referências a produtividade primária da natureza, a agricultura familiar camponesa, democratização dos saberes, fortalecimento das manifestações culturais camponesas, objetivando o desenvolvimento a partir destas perspectivas.

A propósito, se a Educação do Campo, conforme orienta Molina (2004), precisa ter cheiro, cor e sabor, para Orquiz, Neto e Teixeira (2020), os processos educativos precisam ser orientados através de vivências e produção de conhecimentos para o convívio com o semiárido,  em que os sujeitos do campo possam abrir os seus sentidos, não somente às belezas do sertão, como as flores do mandacaru, mas desenvolverem de forma próspera as suas vidas, experienciando os saberes e os sabores de uma nova educação em suas existências.

Para Orquiz, Neto e Teixeira (2020) e Molina (2004), a Educação do Campo tem a missão de pensar o campo para a construção de uma nova realidade a ser construída. E que a educação, para a formação e emancipação humana, pode realizar essa missão imprescindível em um país erigido no genocídio indígena e no trabalho escravo de gente africana. Desta forma, de acordo com Orquiz, Neto e Teixeira (2020, p. 49), uma Educação do Campo com e para os sujeitos do campo deve:

 

[..] transmitir a eles/ as, além dos conhecimentos acerca do mundo do trabalho, do clima, da terra, também, uma formação, que possibilite reflexões sobre suas experiências, conquistas de novas aprendizagens e saberes, abrolhando novos significados a sabedoria carregada, para que possam se tornar sujeitos sociais e humanizados, pensantes, ativos, capazes de intervir, aptos a transformarem as suas realidades.

 

Importa considerar, que historicamente o campo não foi pensado como um projeto de desenvolvimento, através da oferta de escolarização, conforme necessidades dos sujeitos. No entanto, para Arroyo (2020), uma nova categoria de educação - Educação do Campo - vai ganhando capilaridade através dos movimentos sociais, educadores e educadoras do campo, efetivando-se como um novo Projeto Político Pedagógico (PPP) e suas matrizes formativas, de acordo com as necessidades dos sujeitos do campo.

Batista e Euclides (2020), argumentam que o desafio da Educação do Campo, suas estratégias curriculares e movimentos políticos pedagógicos precisam articular as ciências com o conhecimento popular que os sujeitos do campo trazem consigo para que possam desenvolver uma melhor compreensão dos fenômenos de suas realidades, a fim de atingirem os objetivos fundamentais que são: a formação e emancipação humana, e a compreensão do campo, como territórios de possibilidades, não mais como sinônimo de atraso.

Segundo Ribeiro (2013), a Educação do Campo, como nova categoria educacional, vem, pari passu, sendo construída  pelos movimentos sociais que fazem as lutas por terra e o campo passa ser um instrumento de possibilidades, de conquistas de escolas para os sujeitos camponeses. Porquanto, o desafio é romper séculos de expropriação do trabalho e de domínio do campesinato neste país pelo latifúndio, da monocultura e dos processos de assoreamento, não somente ambiental, mas cultural, social e dos saberes da agricultura camponesa. E como escreve, através de poesia Casaldáliga (2021 , p. 67) sobre as “Confissões de um Latifundiário:

 

Por onde passei, / plantei / a cerca farpada, / plantei a queimada./ Por onde passei, / plantei / a morte matada. / Por onde passei, /  matei / a tribo calada, / a roça suada, / a terra esperada… /  Por onde passei,  / tendo tudo em lei, /  eu plantei o nada.

 

Como referenda Martins (1979),  o projeto em curso dos grandes latifúndios, desde a colonização ibérica para se efetivar nessas terras o “habitat latifundiário”, a  história brasileira no campo é marcada em sangue e lágrimas, através das lutas de classe. Vale ressaltar os escritores da categoria de Celso Furtado, Caio Prado Jr. e tantos outros pesquisadores como José de Sousa Martins, que retrataram a construção e formação social deste país. Observa Martins (1979, p. 66) “a partir do momento em que a política fundiária brasileira se decide pelos grandes projetos agropecuários - e eles se consolidam no governo Geisel - os conflitos começam a acontecer envolvendo Igreja, governo, fazendeiros e posseiros”.

Como esclarece outro pesquisador, Martins (2010), em “O Cativeiro da Terra”, que colocou o seu cálamo sociológico a explicar este projeto de exclusão para os deserdados e pela forma como foi consolidado o habitat latifundiário neste país, a partir do esgotamento e declínio da escravidão que foi a criação da Lei de Terras[24], efetivando assim, a invenção de uma fórmula simples:

 

[...] da coerção laboral do homem livre: se a terra fosse livre, o trabalho tinha que ser escravo; se o trabalho fosse livre, a terra tinha que ser escrava. O cativeiro da terra é a matriz estrutural e histórica da sociedade que somos hoje. Ele condenou a nossa modernidade e a nossa entrada no mundo capitalista a uma modalidade de coerção do trabalho que nos assegurou um modelo de economia concentracionista. Nela se apoia a nossa lentidão histórica e a postergação da ascensão social dos condenados à servidão da espera, geratriz de uma sociedade conformista e despolitizada. Um permanente aquém em relação às imensas possibilidades que cria, tanto materiais quanto sociais e culturais (MARTINS, 2010, p. 3).

 

Vale destacar, nessa problemática, o que escreveu Fanon (1968), sobre Os Condenados da Terra em um contexto de guerra pela independência da Argélia, entre os anos de 1950 e 60, do século XX, mas que nos traz ensinamentos e reflexões para o nosso contexto,  pela forma desumana, violenta do processo de colonização que levou ao genocído os povos africanos e indígenas para se efetivar o projeto de dominação e enriquecimento das elites europeias.

Vale mencionar que este pensador discorre sobre os problemas da descolonização para os povos colonizados e escravizados, entre eles, os camponeses, explorados em condições de vida aviltadas pela miséria, com bocas a mais para alimentar, não tiveram outra alternativa que não se amontoarem nas periferias das grandes cidades. E outros camponeses que optaram pela luta, pela resistência de permaneceram em suas comunidades tradicionais, o que retrata também os problemas da descolonização em nosso país, cimentado no projeto do latifúndio, e da exploração do trabalho camponês e dos milhões de camponeses sem terra.

Nessa trajetória de dominação, em que elites europeias arquitetaram estratégias de manipulação, incluindo a religião para conformar os dominados, Jean-Paul Sartre, prefaciando esta obra de Fanon (1968), oportuniza-nos reflexões  para esta problemática, a qual podemos trazer para o contexto brasileiro de exploração e dominação do povo camponês, na seguinte questão:

 

A violência colonial não se propõe apenas manter, em atitude respeitosa, os homens submetidos, trata também de os desumanizar. Nada será poupado para liquidar as suas tradições, para substituir as suas línguas pelas nossas; o cansaço, claro, embrutece-los-á. E se resistem ainda, fatigados e doentes, a tarefa será cumprida até ao fim: apontam estouvadamente sobre os camponeses as espingardas; vêm civis que se instalam em sua terra e os obrigam, ao peso do chicote, a cultivá-la para eles. Se resiste, os soldados disparam, um homem é morto; se cede e se degrada, deixa de ser um homem; a vergonha e o medo quebram o seu carácter e desintegram a sua pessoa.  (SARTRE, 1968, p. 9)

 

Nessa problemática do povo camponês, Caldart (2013), aponta que o agronegócio e suas formas de controle da produção são os maiores problemas da atualidade em face das expansão do capitalismo na agricultura a exauri, não somente a biodiversidade nativa, mas expulsando os agricultores de suas terras para aumentar a concentração fundiária. No entanto, se os camponeses estão sendo pressionados pela lógica do agronegócio, emergem, de acordo com esta pesquisadora, sujeitos que estão a formular um novo projeto de desenvolvimento do campo de base agroecológica, que considera os saberes na relação com a natureza.

Sendo assim, o que está em disputa é uma educação que integra uma luta dos movimentos sociais por terra e trabalho, argumenta Ribeiro (2013, p. 196), reforçando que a finalidade da escola do campo “ é a formação do trabalhador e da trabalhadora rurais com competência para enfrentar os desafios da produção e da vida contemporânea”. 

Nesse sentido, sabe-se, também que as escolas do campo de ensino médio do Ceará estão seguindo experiências e estratégias curriculares, a partir de lutas, conquistas, desejos e sonhos dos movimentos sociais do campo, acreditando que uma nova realidade camponesa pode ser construída, não apenas com tijolos e paredes, mas através das mãos da organização coletiva da escola, de educadores e educadoras do campo e educandos (as). Por conseguinte, orientado por  um PPP de base progressista e de pedagogia histórica, crítica e dialética. Como bem orienta Casaldáliga (2004, p. 1):

 

A primeira coisa que terá de ser feita para construir o novo mundo será sonhá-lo. O novo não virá, a menos que muitos e muitas o sonhem utópicamente, esforcem-se para configurá-lo como sonho e projeto, como esperança. Para que venha o mundo novo, é preciso colocar para trabalhar a imaginação, a fantasia, a esperança, a utopia. Sonhar o outro mundo possível é um primeiro passo para fazer com que aconteça, com que nasça. Como será este outro mundo possível? Como deveria ser?

 

Dessa feita, é deste encontro e desta trajetória de vida, relação natureza/sujeito-aprendiz que apresento este memorial que buscou registrar alguns recortes deste aprendiz e que finaliza com uma palavra: gratidão a todos e todas que fizeram e fazem a CREDE 12 sob a liderança da professora Joyce, sua generosidade e ponderação nas orientações; ao professor Wandsson, orientador da CEDEA, o meu muito obrigado. A todos que estiveram na liderança da CREDE 12, o professor Maurício, o professor Célio, a professora Janaína, a companheira Tânia na CEGAF; companheiras e companheiras da CEDEA 12, o meu muito obrigado.

 



[1] O rio Jaguaribe, entre Russas e Jaguaruana, vai se dividir e formar a Ilha do Poró e que no seu início em Russas, de acordo com as simbologias e representações sociais, é chamada de Ilhota com os rios Campo Grande  na margem esquerda e Rio Grande na margem direita da ilha. 

[2]Uma entidade complexa que inclui o solo, os oceanos, a atmosfera e a biosfera terrestre: o todo constitui um sistema cibernético auto-ajustável por feedback que é responsável por manter um ambiente fisicamente e quimicamente ideal para a vida no planeta

 

[3] La Pachamama y El Humano - preâmbulo de Bayer (2011, p.16) "Celebrar a natureza, a PachaMama, da qual fazemos parte e que é vital para a nossa existência... (decide-se construir) uma nova forma de convivência cidadã, na diversidade e harmonia com a natureza para alcançar o bem viver”.

[4]  Coruja rasga-mortalha  (Tyto furcata). O atrito de suas asas, ao voar, produz o som de um pano que está sendo rasgado. O povo acredita que, quando esta coruja passa sobre a casa ou pousa no telhado da residência e faz um piado, caso alguém esteja doente, essa pessoa morrerá (GARCIA, 2021. p.13).

[5] Reproduzo ao longo do texto algumas linguagens de minha mãe. Difrúcio é gripe.

[6] Boquinha da noite, linguagem popular que significa início da noite nos sertões cearenses.

[7] Cavalete – pedaço de madeira leve, utilizada para atravessar o rio a nado.

[8] Manifesto do chefe Seattle ao presidente dos EUA (SEATTLE, CHEFE ÍNDIO, 1987).

[9] [...]Pressupõe que a diversidade biológica e cultural são construções mutuamente dependentes enraizadas em contextos geográficos definidos. (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015, p.15).

 

[10] Músicas: Conheço o meu lugar, (BELCHIOR, 1979); Como nossos pais, (BELCHIOR, 1976).

[11]A psicologia ambiental está inserida em um amplo campo multidisciplinar de estudos das relações homem-ambiente, do qual fazem parte a Geografia Social, a Arquitetura, a Sociologia Ambiental, a Ecologia Humana, o Planejamento Urbano, a Biologia e a Engenharia Ambiental, (CARVALHO; CAVALCANTE; NÓBREGA; 2011, p.29).

[12] A Lei da Anistia que completou 40 anos no mês de agosto de 2019.Quando assinou a histórica norma, em 28 de agosto de 1979, o presidente João Baptista Figueiredo concedeu o perdão aos perseguidos políticos (que a ditadura militar chamava de subversivos) e, dessa forma, pavimentou o caminho para a redemocratização do Brasil, (WESTIN, 2019).

[13] O Clube da Esquina era uma confraria de amigos que se reuniam num pequeno boteco situado na esquina da Rua Divinópolis com a Rua Paraisópolis, num bucólico bairro de Belo Horizonte chamado Santa Teresa. Fazia parte dessa confraria, interessada em música, cinema e poesia, Milton Nascimento, Wagner Tiso, Fernando Brant, Toninho Horta, Beto Guedes, Tavinho Moura, os irmãos Lô e Márcio Borges, Robertinho Silva, Nivaldo Ornelas, Ronaldo Bastos, Murilo Antunes, Nelson Ângelo e Novelli, entre outros (SOUSA, 2011, p.5).

[14] Bola de meia, bola de gude. Milton Nascimento e Fernando Brant - Intérprete: 14 Bis, (1980). 

[15]  Menina Veneno - Vom Ritchie, (1983).

[16] O professor Lauro de Oliveira Lima nasceu em 1921, na região Nordeste, em Limoeiro do Norte, no Estado do Ceará, e formou-se em Direito pela Faculdade de Direito do Ceará, mas tornou-se um pedagogista que desenvolveu um olhar crítico e desbravador na epistemologia apresentada por Piaget, por meio do desenvolvimento do Método Psicogenético, caracterizado, principalmente, pelo cunho pedagógico-didático. A vida e obra do eminente professor foi objeto de uma dissertação do autor José Luiz de Paiva Mello intitulada “Lauro de Oliveira Lima: um educador brasileiro” (SILVEIRA, 2016, p. 1).

[17] Na concepção “bancária” que estamos criticando, para a qual a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos, não se verifica nem pode verificar-se esta superação. Pelo contrário, refletindo a sociedade opressora, sendo a dimensão da “cultura do silêncio”, a “educação” “bancária” mantém e estimula a contradição, (FREIRE, 1987, p. 38).

[18] Cidadania Planetária supõe o reconhecimento e a prática da planetaridade, isto é, tratar o planeta como um ser vivo e inteligente, (GUTIÉRREZ, 2013, p. 24).

[19] A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário (VYGOTSKY, 1994, p. 113).

 

 

[20] A conferência é uma ação de educação ambiental que busca estimular processos dialógicos e participativos, enfatizando a importância da ação coletiva e da atuação em rede. É um processo democrático e participativo nas escolas, que reúne estudantes, professores e comunidade escolar para dialogar e refletir sobre as questões socioambientais, para elaborar um projeto de ação com o objetivo de transformar sua realidade e escolher representantes que levam adiante as ideias acordadas entre todos (BRASIL, 2017a, p. 7).

[21] A Comissão de Meio Ambiente e Qualidade de Vida - Com-vida - é uma nova forma de organização na escola, que junta a ideia dos jovens da I Conferência de criar “conselhos de meio ambiente nas escolas”, com os Círculos de Aprendizagem e Cultura. Estudantes são os principais articuladores da Com-vida (BRASIL, 2007, p. 13).

 

[22] O que mais dói. Patativa do Assaré.

[23] O Escola sem Partido surge como movimento em 2004, liderado por Miguel Narciso Urbano Nagib, procurador do estado de São Paulo. Os defensores do ESP afirmam que o projeto surge da necessidade de defender os estudantes na escola, pois a grande maioria dos professores pregariam uma ideologia considerada danosa dentro de sala de aula (SEVERO; GONÇALVES; ESTRADA, 2019, p. 10).

[24] [...] Instituía um novo regime de propriedade em que a condição de proprietário não dependia apenas da condição de homem livre, mas também de pecúlio para a compra da terra, ainda que ao próprio Estado. O país selecionaria a dedo, por meio de seus agentes na Europa, o imigrante pobre, desprovido de meios, que chegasse ao Brasil sem outra alternativa senão a de trabalhar em latifúndio alheio para um dia, eventualmente, tornar-se senhor de sua própria terra (MARTINS, 2010,  p. 03).

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